SOBRE A MEDICALIZAÇÃO
- Clara Fontes
- 2 de ago. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 19 de mai.

A relação que a sociedade estabelece com o sofrimento psíquico não é algo constante na história. Muito pelo contrário, o lugar conferido ao adoecimento psíquico sofreu diversas transformações ao longo do tempo e particularmente nas últimas décadas, onde verificou-se grandes mudanças na maneira como nossa sociedade se organiza com o advento da internet, dos smartphones, das mídias digitais etc.
É interessante notar que a própria atualização do manual usado internacionalmente para definir como é feito o diagnóstico de transtornos mentais - o DSM - revela algo sobre a mudança do lugar conferido ao adoecimento psíquico em nossa sociedade. Publicado pela primeira vez em 1952, o manual contava com 106 categorias diagnósticas, tendo chegado a 300 categorias no DSM-V, lançado em 2013 e em vigor até hoje. Verifica-se assim uma clara proliferação daquilo que é reconhecido e instituído como “transtorno mental”, processo que é acompanhado, não por acaso, por um aumento acentuado no consumo de drogas farmacológicas pela população.
Outra importante consequência da proliferação dos diagnósticos psiquiátricos é o fato de que estados psicológicos antes entendidos como parte da existência humana, como a tristeza ou o próprio luto, passam a ser compreendidos como anomalias a serem corrigidas através do recurso medicamentoso - daí a noção de “patologização” da vida e sua consequente medicalização. Desta forma, a psiquiatria deixa de atuar apenas no tratamento de patologias e passa a se voltar para o alívio de formas de mal-estar que anteriormente eram tidas como parte da experiência humana.
Que lugar resta para o sujeito neste cenário? Um sujeito com sua história, suas dores e questões que não precisam nem deveriam ser abafadas, mas sim reconhecidas e valorizadas em sua singularidade - são dores que falam de uma vida e que podem ser em certa medida remanejadas com o tempo e num trabalho de análise.
O saber e a prática psiquiátrica são recursos importantes no cuidado e tratamento de diversos quadros, mas não podemos perder de vista os problemas associados a uma cultura de patologização e medicalização da vida. Uma prescrição medicamentosa pode ser fundamental no tratamento de muitos quadros, mas acredito que uma real melhora dependa quase sempre da associação a um trabalho de psicoterapia/psicanálise a médio-longo prazo, para que se possa tratar a raiz do adoecimento psíquico, bem como favorecer que o sujeito possa construir novas maneiras de conduzir-se na vida, mais de acordo com seus desejos e anseios.
O uso e a descontinuação de qualquer tipo de medicamento deve ser feito com o devido acompanhamento médico.